Agora sim, o barco, a praia, ias por aí além e recordavas o barco, a praia, o barco e no negro batel da tua vida é que, se o virares para fora se obtém o que lá estiver. Realidade sim. Realidade não. A que estiver.[1]
Em “raso como o chão”, Álvaro Lapa escreve sobre um “barco abandonado ou virado para fora” que nos abre uma janela para vislumbrar o horizonte e os seus personagens e nos proporciona o encontro com Ana Pimentel (n.1965), uma das artistas representada na exposição “Territórios Imaginados”, comissariada por Elisa Noronha, que a Fundação Bienal de Arte de Cerveira (FBAC) inaugurou em San Sperate (Sardenha, Itália). Natural de Ermesinde (Valongo, Portugal), Ana Pimental venceu, em 1999, o Prémio Aquisição Baviera na X Bienal Internacional de Arte de Cerveira, realizada de 14 de agosto a 12 de setembro, com a técnica mista sobre papel “Uma janela aberta para o horizonte” (180×180 cm), somando-se este reconhecimento a um vasto currículo internacional com prémios atribuídos em Portugal, Espanha, Bélgica e China; várias exposições individuais e coletivas bem como participação em feiras internacionais de arte contemporânea que juntam à sua biografia destinos como Alemanha, Argentina ou Brasil, estando a sua obra representada em várias coleções de arte públicas e privadas, igualmente em Portugal e além-fronteiras. Ana Pimentel começa com uma licenciatura em Artes Plásticas – Pintura pela Faculdade de Belas-Artes do Porto, tendo sido depois bolseira da Fundação Noesis de Barcelona.
Concentrada no campo da pintura, a obra de Ana Pimentel mantém como referenciais a Arquitetura, a Natureza e a cultura tradicional portuguesa, nomeadamente na sua dimensão dos ofícios e de um certo universo feminino. Cada pintura é uma coleção de memórias e um emaranhado de terminologias da semiótica do quotidiano que, não raras vezes (como é exemplo a peça da coleção da FBAC), se povoam de palavras, intensificadoras das narrativas da artista. O processo de Ana Pimental é meticuloso e organizado e parte de pressupostos da Arquitetura, enquanto disciplina e matriz, que dá sentido a uma campo lexical que inclui as noções de tempo e identidade. Linhas, costuras, cores, texturas são o contraponto da ordem, afirmando a sua presença numa dimensão orgânica das suas obras que, por vezes, se sobrepõem à ordem, enquanto mescla elementos, facilmente associados à tradição portuguesa e que, através da colagem, expandem o campo dominante da pintura. Partindo do pressuposto da organização do espaço nos limites do suporte, a composição acontece, itinerando entre um processo de organização e desorganização mental, fugaz inquietação que arrasta cada criação para uma teia de densos e complexos exercícios plásticos e de pensamento.
Ana Pimental explora as memórias através do seu códice objetual, citando elementos do nosso espaço e tempo comuns e que provêm da arquitetura, das festividades, do folclore, dos ornamentos, das rosáceas, do mosaico, dos bordados, das flores, das rendas, etc., bem como de “símbolos associados à paz, harmonia e felicidade ou mesmo ao erotismo e amor”, citando a artista. Não obstante a complexidade de referências, as suas obras são da depuração e da delicadeza, com gestos subtis e vibrações enérgicas que variam com a intensidade das cores. “Uma janela para o horizonte” é uma proposta de futuro que parte do passado e das emergências do pensamento e da experimentação plástica, constituindo-se como uma obra perfeitamente representativa da singularidade de Ana Pimentel.
[1] LAPA, Álvaro – raso como o chão. Lisboa: Editorial Estampa, 1977. Página 42.
« Texto de Helena Mendes Pereira