Em 1980, Ângelo de Sousa (1938-2011) venceu o Prémio de Pintura na II Bienal Internacional de Arte de Cerveira, realizada de 2 a 31 de agosto, com o acrílico sobre tela (170×170 cm) de 1979 que integra a Coleção da Fundação Bienal de Arte de Cerveira (FBAC) e pode ser contemplado, neste momento, na exposição “Pintura em três atos”, patente no Fórum Cultural de Cerveira. Contudo, antes de 1980 Ângelo de Sousa já tinha uma história para contar e o seu nome já estava escrito no mapa da Arte Contemporânea nacional e internacional.
Nasceu em Moçambique e, se fosse vivo, tinha celebrado por estes dias 80 anos (nasceu a 2 de fevereiro de 1938). Em Moçambique, com Ruy Guerra (n.1931) descobriu o cinema, a sua primeira grande paixão e decidiu que ia fazer filmes, sonho interrompido pela morte do pai quando tinha 15 anos de idade. Desenhou sempre e começou depois com a pintura a óleo, de forma autodidata. Conta numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro, de 2008, que comprou um livrinho chamado “How to paint in oils” que manteve consigo até ao fim dos seus dias. Nunca foi exatamente o experimentalismo da técnica que lhe interessou, mas sempre a cor, tendo várias fases do seu trabalho plástico em que explora apenas as três primárias, o branco e o preto, em combinações com formas geométricas que formam diálogos interpelativos da relação plástica entre espaço e composição. Em 1955 decide vir para Portugal e matricula-se na Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP), hoje FBAUP. Imediatamente após a conclusão do curso, em 1962, ingressa o corpo docente da Escola, tendo dividido sempre a sua atividade plástica com o exercício da docência, terminando a carreira como Professor Catedrático e, mais do que isso, deixando uma marca indelével em alunos e colegas que com ele conviveram. O entusiasmo pelo ensino artístico e a vontade de criar alternativas, no contexto do Portugal do Estado Novo, motivam-no a fazer parte do grupo de onze artistas e intelectuais que, a 2 de abril de 1963, fundam a Cooperativa Árvore. A partir desta data, Ângelo foi sempre um colaborador presente e atuante, não só como membro dos corpos sociais, mas expondo coletiva e individualmente.
Expõe, pela primeira vez, em 1959 na Galeria Divulgação, no Porto, ao lado de Almada Negreiros (1893-1970). Esta sua primeira exposição marcava o início de um ciclo de exposições, organizado pelo (agora) arquiteto José Pulido Valente (n.1936), que tinha como intenção mostrar, em simultâneo, um artista jovem e um artista consagrado. As exposições, entre coletivas e internacionais, contam-se pela casa das centenas podendo destacar-se, por motivos diferentes, “Ângelo – Escultura e Desenho”, integrada numa série de exposições de’ Os Quatro Vintes, realizada no Porto, na Galeria Alvarez e na Cooperativa Árvore, em 1970, e as grandes retrospetivas, nomeadamente em Serralves, em 1993 (desenho e pintura) e em 2001 (fotografia e cinema) e a de 2003, sobre desenho, no Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, da Fundação Calouste Gulbenkian.
As experiências internacionais a título mais permanente nunca lhe interessaram particularmente. Não obstante, foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e do British Council em Londres entre 1967 e 1968. Frequentou a Slade School of Art e a Saint Martin’s School of Fine Art. No regresso ao Porto funda, com José Rodrigues (1936-2016), Armando Alves (n.1935) e Jorge Pinheiro (n.1931), Os Quatros Vintes, um coletivo que partilhava um “20” na conclusão do percurso como alunos da ESBAP. O grupo realizou, ao longo de cerca de quatro anos, exposições coletivas e outros projetos, partilhando quase todos uma importante colaboração com o Teatro Experimental do Porto em trabalhos de cenografia.
A obra de Ângelo de Sousa foi sendo sempre comparada às propostas de Mondrian (1872-1944) e Wassily Kandinsky (1866-1944), influências não negadas pelo artista que contudo, sempre se revelou mais próximo do expressionismo do que do neoplasticismo e confessando-se atento à gravura japonesa e a outras expressões orientais. Em todo o caso, Ângelo de Sousa foi sempre alheio a tendências, tendo resistido ao figurativo e ao movimento neorrealista que se constituiu como marca de resistência no Portugal do pré 25 de Abril de 1974. O seu interesse foi sempre a cor que “nos surge sob a exuberância de listas ou num progresso de quadrados e retângulos enfaixando-se em cruz ou sob uma imaginada escrita japonesa ou lançada à semelhança de um jogo de paus que seguem pelos ares ou numa contenção cintada de barras que estrangulam uma ideada abstração monocromática (…)[1], como é exemplo a obra que integra a coleção da FBAC. A necessidade de conhecer a cor traduz-se no seu próprio princípio de existência, enquanto espaço de vida e de unificação dos sentidos. As cores primárias abrem-se em sonoridades, expandem-se em variações, multiplicando-se as obras em que a paleta deriva para tons que não conseguimos definir. A obra em análise, poderemos dizê-lo, oscilará cromaticamente entre o magenta e o amarelo, aproximando-se quer do laranja como dos tons terra, na dependência da relação que estabelece com a luz e o espaço de exposição. Depois há linhas, sugestões de planos, figuras geométricas.
O pintor Ângelo de Sousa experimentou a forma tridimensional, ou escultural, explorou a fotografia e o filme, mantendo-se fiel à sua pesquisa plástica e não negando a sua natureza curiosa, atenta e literária. Leu sempre muito e quis sempre ver tudo, estar a par de tudo. Antes de chegar à Bienal Internacional de Arte de Cerveira de 1980 já tinha merecido Prémio Internacional (ex-áqueo) na XIII Bienal de São Paulo e representado Portugal na Bienal de Veneza de 1978. Pelo meio passou, claro, em 1977, pela Alternativa Zero: Tendências Polémicas da Arte Portuguesa Contemporânea, organizada por Ernesto de Sousa (1921-1988), na Galeria Nacional de Belém, em Lisboa. Em Vila Nova de Cerveira reencontrará velhos amigos: Jaime Isidoro (1924-2009) que conhecia do Porto e da Galeria Alvarez, José Rodrigues do tempo de aluno e professor da ESBAP, do grupo da Cooperativa Árvore e d’ Os Quatro Vintes, entre tantos outros. A obra de arte em análise liga-o, para sempre, a esta casa e à sua História.
Texto de Helena Mendes Pereira